Como o gladiador na arena em que foi posto pelo destino que de escravo o expôs condenado, saúdo, sem que trema o César que haja neste circo rodeado de estrelas. Saúdo de frente, sem orgulho, que o não pode ter o escravo; nem alegria, que a não pode fingir o condenado. Mas saúdo, para que não falte à lei aquele a quem toda a lei falta. Mas, acabando de saudar, cravo no peito o gládio que me não servirá no combate. Se o vencido é o que morre e o vencedor quem mata, com isto, confessando-me vencido, me instituo vencedor.
Barão de Teive
Recordou que de todas as criaturas que constituem o orbe, o fogo era o único que sabia ser seu filho um fantasma. [...] Caminhou contra as línguas de fogo. Estas não morderam sua carne, estas o acariciaram e o inundaram sem calor e sem combustão. Com alívio, com terror, compreendeu que ele também era uma aparência, que outro o estava sonhando.
Jorge Luis Borges
O homem é indestrutível, e isso significa que não há limite à destruição do homem.
Maurice Blanchot
A Fênix, segundo o que relataram Heródoto ou Plutarco, é um pássaro mítico, de origem etíope, de um esplendor sem igual, dotado de uma extraordinária longevidade, e que tem o poder, depois de se consumir numa fogueira, de renascer de suas cinzas. Quando se aproxima a hora de sua morte, ela constrói um ninho de vergônteas perfumadas onde, no seu próprio calor, se queima. Os aspectos do simbolismo surgem, então, com clareza: ressurreição e imortalidade, reaparecimento cíclico.
De onde nos falam essas vozes que continuam a reafirmar, para o destino do Humano, o destino da Fênix? Do século XX? Em plena modernidade, a Fênix continua a ser o símbolo daquilo que só existe em função do próprio nome: ela significa “aquilo que escapa às inteligências e aos pensamentos”. Assim como a idéia da Fênix não pode ser alcançada a não ser através do nome que a designa; Deus ou o Criador não pode ser alcançado a não ser pelo intermédio de seus nomes e de suas qualidades.
Mas haverá realmente “um César neste circo rodeado de estrelas”, como interroga Pessoa através do filósofo Teive? Ou essa é a mais ancestral de todas as esperanças anti-solipsistas deste ser que, em se descobrindo criatura cognoscitível dentre tantas outras apenas sencientes, vem dispendendo, ao longo das eras, descomunais esforços para invocá-Lo através de seu Verbo? Em As ruínas circulares, Borges afirma que o Pai temia que o Filho, ao meditar sobre o privilégio anormal do pensar, descobrisse de alguma maneira a sua condição de mero simulacro. O que não previa o Pai, porém, era que Ele também fosse o sonho de um Outro.
Toda a tradição literária do Doutor Fausto – um dos maiores mitos do individualismo contemporâneo e provavelmente o único centrado num personagem verdadeiramente empírico – gira em torno desse desejo atávico e paradoxal de conhecer a Deus através da Ciência, nem que para isso seja preciso vender a própria alma ao Diabo. Mas Mefistófeles – como relatam Marlowe, Goethe, Dostoiévski, Paul Valéry, Thomas Mann, Fernando Pessoa, Jorge Luis Borges, Guimarães Rosa e tantos outros – responderá ao homem, a cada invocação, e de maneira críptica e equívoca, quando muito: "Você está no fim – o que você é.”
Talvez do hálito maligno desta profecia advenham as utopias e os sonhos de fomentação recriadora que assolam o homem moderno. Ou os seus pesadelos, se considerarmos o que pensa Goya na gravura “O sonho da razão produz monstros”, e o que pensam E.T.A. Hoffman, Mary Shelley, Edgar Allan Poe e Robert Louis Stevenson, com Olímpia, a criatura do Dr. Frankenstein, William Wilson, e o Mr. Hyde que aflora no corpo do Dr. Jekyll: ainda bonecos autômatos, cadáveres de ambulantes ou fenômenos doppelgänger, todos eles precursores de realidades mais sofisticadas como as que nos seriam apresentadas, posteriormente, por Aldous Huxley, Arthur Clarke, H. G. Wells e Isaac Asimov, com seus elegantes andróides, robôs e cyborgs nascidos das cada vez mais promíscuas relações do homem com a tecnologia.
Quando Asimov propôs as três leis da robótica, protegendo os seres humanos da possibilidade de destruição pelas máquinas inteligentes, talvez ainda não cogitasse que haveria uma época em que essas leis sugeririam a necessidade de uma versão análoga que protegesse os robôs da ação destruidora dos humanos. Afinal, será que ao “César deste circo rodeado de estrelas” caberá sempre, apenas, o lavar as mãos? Não deveria o Criador responsabilizar-se minimamente, do ponto de vista ético, por suas criaturas: as novas formas de inteligência que vai aperfeiçoando, e que, no limite, nada mais são do que prolongamentos de seu próprio ser? E mais: haveria realmente alguma possibilidade de se traçar limites entre os seres animados e inanimados, entre o que existe e o inexistente? A inteligência, qualidade prezada pelos humanos e legitimada por Darwin e Descartes como responsável por torná-los pertencentes a uma categoria “superior” dentre os demais habitantes do Paraíso terrestre, terá o mesmo valor como parte intrínseca de um ser inorgânico?
E até quando as criaturas manufaturadas pelo homem serão necessariamente “inorgânicas”? Como diz Pierre Lévy, no século XXI o ser humano experimenta cotidianamente desde a auto-manufatura plástica e protética até a expansão de seu invólucro num “hipercorpo”. Os transplantes criam uma grande circulação de órgãos entre os corpos humanos e de animais. Os implantes e as próteses confundem a fronteira entre o que é mineral e o que está vivo. Células embrionárias, córneas, esperma, óvulos e sobretudo o sangue são agora socializados, mutualizados e preservados em bancos especiais: “Um sangue desterritorializado corre de corpo em corpo através de uma enorme rede internacional da qual não se pode mais distinguir os componentes econômicos, tecnológicos e médicos. O fluido vermelho da vida irriga um corpo coletivo, sem forma, disperso. Fazendo eco ao hipercórtex que expande hoje seus axônios pelas redes digitais do planeta, o hipercorpo na humanidade estende seus tecidos quiméricos entre as epidermes, entre as espécies, para além das fronteiras e dos oceanos, de uma margem a outra do rio da vida”. Uma verdadeira Matrix, como diria William Gibson, inaugurando com o seu Neuromancer uma nova era para a Ficção Científica: a ficção do ciberespaço.
Convertido na matéria-prima de uma usina coletiva de produção energética para a manutenção da realidade virtual, um inesgotável hipercorpo humano fomenta a ilusão de todas as percepções individuais. Matrix é tudo: o ar que os humanos pensam respirar, o chão que imaginam pisar e os estímulos que lhes conferem todas as suas impressões sensoriais. Só uma coisa não existe em Matrix: a verdade, uma verdade que seria a consciência de que o mundo é inteiramente virtual, mantido como um sonho pela energia dos corpos biológicos dos seres que dormem um sono eterno. No interior deste universo, como um Neo que ameaça despertar – ou como um avatar eletrônico que, de súbito, contempla sua face carnal do outro lado da tela –, surgem as primeiras desconfianças sobre uma nova era, para alguns já identificada como “pós-humana”.
Uma era anunciada por Michel Foucault em As palavras e as coisas, verbalizada por Ihab Hassan num artigo publicado em 1977 na Georgia Review: “Prometeus as performer: toward a posthumanist culture?”, e nominalmente discutida por pensadores como Deleluze, Guattari, Lyotard, Habermas, Hayles, Haraway, Fukuyama, Santaella e muitos outros. Ao contrário de surgir como mais uma proposta apocalíptica do pós-tudo, essa visão se propõe a discutir o fim do humanismo – concepção aplicada não a toda a humanidade, como diz Hayles, mas à “fração de humanos que dispuseram de riqueza, poder e tempo livre para se definirem como seres autônomos exercitando seus desejos através de sua ação e escolha individuais”.
Por isso, a maioria dos filósofos contemporâneos vê o pós-humanismo antes como uma expansão do que como uma contração do pensamento humanista tradicional. As feministas talvez sejam as que melhor parecem compreender essa possibilidade de ampliação do conceito de humanismo através da demolição das estruturas do patriarcalismo, da hierarquia de ordem e poder masculinos e do projeto imperialista de subjugação da natureza e dos seres ditos “inferiores”, sejam eles quais forem.
O projeto deste livro surgiu ao longo de duas disciplinas por mim ministradas no Curso de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal de Pernambuco, durante as quais essas questões foram debatidas. A maioria dos ensaios aqui reunidos foram, portanto, apresentados e discutidos durante seminários em sala de aula, por alunos de mestrado e doutorado. A novidade das abordagens e a interdisciplinaridade das propostas – que estabelecem o intercâmbio da literatura com as artes plásticas, o cinema e a música, em veículos tradicionais, midiáticos e digitais –; bem como a qualidade dos textos resultantes desta experiência, produziram o interesse pela publicação. “Intersecções” – título sugerido pelo grupo, e complementado com um subtítulo (“Ciência e tecnologia, literatura e arte”) a Walter Benjamin (de “Magia e técnica, arte e política”) – divide-se em quatro secções, de acordo com a identificação temática preponderante dos artigos, embora todos dialoguem entre si, como verá o leitor: “Literatura e utopia”, com a participação de Ana Paula Arnaut, Artur A. de Ataíde, Michelle Jácome Valois, Rebeca Santos de Amorim Guedes;“Literatura e corpo”, com a minha colaboração e a de Fernando de Mendonça, Renata Soriano de Souza Tavares e Theresa Katarina Bachmann; “Literatura e ciência”, com os textos de Cristhiano da Motta Aguiar, Germano César da Silva, Everardo Norões, Márcia de Miranda Lyra, Marcelo Ferreira Marques e Tércia Costa Valverde; e Literatura e tecnologia”, da qual participam Ana Cecília Acioli Lima, Adriana Dória Matos, Conrado Vito Rodrigues Falbo e Fabiana Móes Miranda. Vale ressaltar que o termo “Literatura” é aqui utilizado numa concepção abrangente, capaz de dar conta das diversidades com que o “texto” se apresenta ao leitor na contemporaneidade.
A organizadora e os alunos e ex-alunos do Programa de Pós-graduação em Letras da Universidade Federal de Pernambuco, bem como a professora e o aluno do Programa de Pós-graduação em Estudos Literários da Universidade Federal de Alagoas, que aqui comparecem pela sintonia de seus trabalhos com a nossa proposta, sentem-se honrados em contar com algumas colaborações especiais, que muito contribuem para abrilhantar esta coletânea: a do poeta-engenheiro pernambucano Joaquim Cardozo, com o conto inédito “Na estação”, gentilmente cedido pela família ao também poeta José Everardo Norões, autor do ensaio que se debruça sobre um de seus textos mais intrigantes, “Visão do último trem subindo ao céu”; a do escritor paulista de Ficção Científica André Carneiro, considerado um dos maiores expoentes do gênero no Brasil e no exterior, que atenciosamente nos enviou o conto “Noite de amor na galáxia”; a da professora da Universidade de Coimbra, Ana Paula Arnaut, com um estudo luminar sobre a utopia na Literatura Portuguesa; e a da pintora, escritora e jornalista Ladjane Bandeira, cuja série de gravuras inéditas, intitulada Plastipoemas Autodialogados, nos foi cedida pelo Instituto Cultural Ladjane Bandeira para ilustrar a capa deste livro, como parte da homenagem prestada pelo grupo, neste ano de 2009, à artista pernambucana que elaborou sua obra em torno de preceitos científicos, por ocasião do décimo aniversário de seu falecimento.
Se a História nos prova, a cada dia, que não há limite à destruição do homem pelo homem – como afirma Maurice Blanchot –, as histórias aqui reunidas também nos acenam com um rasgo de esperança: a de que o Humano, em seu processo de busca da indestrutibilidade, possa atingir o estágio utópico que ainda não cessou de procurar: a experiência de plenitude na qual já não sinta a necessidade de vender sua própria alma, seja a Deus, seja ao Diabo.
Ermelinda Maria Araújo Ferreira
Recife, abril de 2009